sexta-feira, 24 de junho de 2011

PERIGO REAL (DIÁRIO DO GRANDE ABC, 27/03/11)

Perigo real

Sara Saar
Do Diário do Grande ABC

Vítima de abuso, a  criança se sente encurralada. "Não sei porque não contei a ninguém. Olhando agora, como adulta, gostaria de ter sido avisada que isso poderia acontecer", declara a escritora Odívia Barros, que só conseguiu falar sobre a situação indesejada muitos anos depois, já adulta.

Com o intuito de alertar as crianças, sem assustá-las, Odívia assina o lançamento "Segredo Segredíssimo" (Geração Editorial, R$ 22, 32 páginas), que de maneira lúdica, em linguagem apropriada para crianças de 5 anos, evidencia a necessidade de romper o 'muro do silêncio'. "A ideia era trabalhar o conhecimento que cada criança tem, respeitando a faixa etária, sem oferecer novas informações que pudessem impressioná-las demais".

Ensinar a filha como reconhecer e sair de uma situação de abuso, caso fosse abordada, foi a maior preocupação da autora. "Fiz o que eu gostaria que tivessem feito comigo", conta. "Os meus pais sempre foram cuidadosos, mas não me avisaram desse perigo. Poucos fazem isso, e eu não os culpo".

Contribuição para o combate, "Segredo Segredíssimo" ensina passos básicos aos leitores mirins, a exemplo de reconhecer uma situação indevida e dividir o problema com pessoas de confiança, ou seja, nunca guardar o segredo. Em contato com a publicação, a criança compreende que a situação vivida pela personagem Adriana causa muito sofrimento.

Romper com o muro do silêncio está nas mãos das crianças, o que não retira a responsabilidade dos adultos em zelar por elas. Indiretamente, o livro também orienta os pais enquanto mostra o comportamento da mãe de Adriana. No enredo, a garota é protegida pelos familiares, em vez de ser recriminada ou punida. "Muitas vezes não sabemos como reagir diante de uma situação tão delicada e difícil".

Deste modo, a publicação pode ser utilizada tanto pela família quanto pelos professores como material que facilita a discussão com crianças. No fim do livro existem cinco perguntas sobre o tema. "Todas as crianças com idade igual ou acima de 5 anos que tiveram acesso ao livro responderam corretamente à última pergunta", afirma. É ela: 'O que a criança que tem um segredo segredíssimo deve fazer?'

Questionada sobre a inexistência de uma punição explícita para o abusador no livro, Odívia afirma: "Sabemos que 90% dos casos de abuso sexual infantil são feitos pelos próprios familiares. Qual criança iria se sentir confortável para revelar um segredo dessa complexidade, sabendo que alguém que ela tanto ama estaria sendo punido pelo ato? O que acontece com o abusador depois disso é uma questão para ser tratada por nós, adultos."

Um dos quadros mais tristes é o ciclo que o abuso provoca, no qual a vítima de hoje pode se tornar o abusador de amanhã. "Recomendo o filme "O Lenhador" (The Woodsman) para que as pessoas comecem a entender a gama de emoções conflitantes causada pela vivência de um abuso".

Tomar consciência dessa realidade pode ser doloroso, mas ignorá-la só favorece a ação de pessoas que utilizam a relação de poder com as crianças para se gratificarem por meio do sexo.
Polêmica ao humanizar pedófilo
Os males causados pelo abuso sexual infantil marcam a vida de um assediado para sempre. O exorcismo das lembranças motivou a produção do livro "Tiger, Tiger" pela escritora norte-americana Margaux Fragoso. Ainda inédita no Brasil, a publicação apresenta de maneira fria e direta o relacionamento que a autora teve com um pedófilo durante 15 anos.

"Passar tempo com um pedófilo é como estar drogado. É como se eles fossem crianças também, mas com um conhecimento que as crianças não têm", diz um trecho. "Eles conseguem fazer o mundo de uma criança... incrível, de alguma forma."

Margaux conheceu 'Peter' (nome fictício) aos 7 anos. A divertida companhia que ele lhe proporcionava começou a se tornar cada vez mais íntima. Aos 8 anos teve sua primeira relação com ele. Apesar de tudo, a escritora descreve o homem como um pai ou uma espécie de tutor.

A família mal estruturada surge como um dos motivos da situação. A mãe tinha problemas mentais e o pai era alcoólatra, fazendo com que a então garotinha encontrasse atenção nos braços do desconhecido. Enquanto seu lado adulto sabe que o relacionamento é completamente errado, as lembranças da infância confusa remetiam principalmente ao carinho passado por Peter. É justamente a humanização do pedófilo que tem criado polêmica em torno do livro, sendo que o criminoso sempre é retratado como um monstro em praticamente todos os casos.

Hoje, aos 31 anos, Margaux parece ter atingido maturidade o bastante para lidar com a situação da maneira mais coerente possível. (Luís Felipe Soares)

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